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A enfermagem e eu - Rebecca Alethéia Parte 3






Estou feliz de te ter por aqui lendo a “parte 3” da minha vida, espero que você tenha lido a parte 1, a parte 2. Se sim, ótimo! Se não vou deixar os links aqui para poder ler.



A enfermagem e eu - Parte 2



A vida não é fragmentada em partes, tudo acontece simultaneamente e nada é dividido como faço nesses relatos, mas foi o melhor jeito de retratar um pouco da minha tragetória, teve tanta coisa que eu não escrevi que passou desapercebido mas que eu tenho a completa certeza que fará sentido ser dito agora.


Nasci em um berço, quer dizer, nasci de um ventre e de uma fusão entre educação, classe e raça que me ensinaram a ser negra, mulher, a importância equidade, de luta por diretos de classe e que me fizeram pensar que podemos nos dar ao outro mesmo não tendo muito a oferecer. Me ensinou que a luta coletiva tem mais valor, aliás eramos uma família de 6 (papai, mamãe, eu e 3 irmãos) agora 7 (o Rhani chegou), quer dizer, agora 15 (cunhadas e sobrinhos). Eu vim de uma família RICA, sim, RICA de conhecimento, um lar em que a prioridade era os estudos, como eu já contei anteriormente, não tinhamos muito dinheiro, mas eu sabia o que era ter um lar, o que era ter um carro velho para que pudesse levar minha mãe às 6 da manhã e traze-la às 23 horas. Eu tinha uma vó que mesmo “analfabeta”, como o sistema à classifica, inspecionava as nossas lições de casa. Um lar em que nunca faltou comida, nunca faltou um teto para podermos dormir, um lugar em que foi cheio de educação coretiva físicamente e moralmente me faz me sentir RICA.




As minhas roupas eram só compradas uma vez ao ano, no Natal, e se comprasse no meio do ano, a frase da minha mãe seria: “Vou guardar para vocês usarem no Natal”. Me formei em escola pública, quando eu fui estudar no período noturno que só foram 2 anos da minha vida, eu pensava: “Agora vou poder parar de usar uniforme e minha mãe vai comprar mais roupas pra gente”; a minha mãe nunca deixou isso acontecer, ela dizia: “Vá de uniforme assim suas roupas não vão estragar”, nossa aquilo era uma tortura, ninguém do período noturno usava uniforme, apenas EU e meu irmão, não lembro muito deles usando uniforme como eu no noturno mas eu me lembro eu usando. Já era a feia da escola e ainda usando unifrome, calça de tactel azul e camiseta branca com o símbolo das olimpiadas.


Minhas colegas falavam de paqueras, namorados e eu sem paqueras e nem ao menos namorado. Foi eu, Rebecca Alethéia, que naquele colégio ganhei 2 anos seguidos o segundo lugar de mulher mais feia da escola, dois anos vice, obviamente a primeira colocada também era negra como eu tinha o cabelo mais crespo que eu, era extremamente pobre, seu nome é Luana, não me lembro o sorbrenome, ela tinha perdido sua mãe muito cedo, vivia em uma casa de extrema pobreza muito próxima da escola que por sinla um bairro que eu considero de classe média na época era notória as condições sociais e de extrema vulnerabilidade que essa mulher vivia juntamente com o seu pai e irmão. Não tinha água, talvez ela tamém não tivesse comida e alguns dias eletricidade lhe faltava. Eu nunca tinha entrado em uma casa tão humilde e com tantas vulnerabilidades, acredito que nos aproximamos pela questão racial que nos unia assim como as questões sociais, questões de gênero e questões impostas como: AS FEIAS!


Foi nessa escola onde os primeiros insultos de macaca vinha à tona, foi nessa escola em que eu tive repulsão por comer banana, aliás era lá em que eu fui apelidade de macaca. A macaca, segundo lugar de mais feia da escola e usadora de uniformes no período noturno passou na faculdade, se formou, fez especialização, mestrado e lutadora contra as impunidades graças aos ensinamentos de vida da minha família e da vida.


Cheguei no meu primeiro emprego, uma mulher negra subindo as escadas do Centro de Referência em DST/AIDS do município de Mauá, foi motivo de toda a recepção levatar os olhos para mim, estavam lá Hirlanna e Patrícia, todas a olharem impactadas de uma mulher que acabou de chegar no seu primeiro lugar de trabalho, uma mulher negra, eu lembro elas me olhando como se fosse aqueles animais marítimos a espreitar só com os olhos os movimentos fora do seu habitat de trabalho. Caminhei até o meu time e a frase da Elaine (auxiliar de enfermagem) que me marcou foi: “A coordenadora não está, isso significa que na ausência dela, é você quem responde.” Que ótima receptividade para o primeiro emprego, não é mesmo?


Eu era uma recém formada, que não gostava de ver sangue, que não gosto de emergência e que não me sinto bem com pessoas muito doente, mas como pode ser enfermeira? Não sei, mais eu sou dessas, crio um novo mundo no mundo. Eram consultas ambulatoriais e eu não tinha experiência profissional queria aprender tudo e ser uma enfermeira diferente. O HIV/AIDS te ensina que nem todo mundo está doente, é isso, a prevenção e cuidados para o não adoecimento são as chaves do negócio, eu realmente sei que eu AMO SAÚDE e não gosto da DOENÇA, por isso que eu AMO a ENFERMAGEM, te dar oportunidades além do doente!


Não foi fácil comandar um time com ¾ mulheres que tinham 10 anos à mais que eu. Não era fácil ser uma enfermeira que não sabia coletar sangue e/ou tinha medo de sangue, mas a vida encarrega de ensinar. A técnica de Enfermagem Priscila não mediu esforços em me colocar na parede quanto às minhas habilidades técnicas, fazia de pirraça para eu coletar sangue de recém nascido ou pessoas com baixa imunidade ou desnutrição das quais as veias desaparecem. Era um desafio, eu não tinha medo em dizer: “Eu não sei!”, mas sempre passava em minha mente: “Eu posso aprender!”Eu sempre digo e penso que técnica se aprende, liderança talvez... Eu tinha a liderança, a técnica viria com o tempo e o quanto eu estava disposta aquilo, eu não me via indo para a área técnica, porém naquela circustância se fazia necessário. Se é técnica que vocês querem para me respeitarem? Teremos! Lá estava eu, consegui, sabia colher sangue dos recém nascido, assim como das pessoas mais difíceis de fazer punção eu estava lá. Mais que isso, os usuários do serviço da qual eu fazia parte começaram a considerar o quão importante era minha ação por lá e isso fazia toda a diferença para a equipe me ver com mais respeito.


Eu tinha uma agenda pra quem quisesse marcar consulta comigo, não é comum pessoas marcarem consultas com enfermeira, as pessoas quando buscam um serviço de saúde elas querem o médico, aquela pessoa que irá resolver o problema imediato focado na medicalização. A minha agenda enchia, os usuários buscavam os dias dos quais eu atendia, vinham pessoas com necessidades especiais de audição e fala, bolivianos, nigêrianos (nessa época eu não falava inglês), pessoas em situações de rua, pessoas privadas de liberdade, pessoas em vulnerabilidade social, profissionais do sexo, lésbicas, gays, travestis, usuários de drogas, todos encaminhados para a Enfermeira Rebecca. A equipe entendia que eu era diferente que eu ia ao menos tentar minimizar as dores, era o que eu podia fazer. Por incrível que pareça teve um tempo em que os médicos encaminhavam e orientavam os pacientes a agendarem consulta comigo.


Uma das coisas que no meu primeiro emprego eu considero importante foi a franqueza, sempre fui franca com minha chefia, eu pedia dias que não eram férias para viajar, lembro que fui para Manaus prestar um concurso e as passagens seriam mais barata se eu comprasse para ficar 1 semana por lá, eu pedi, e deu certo? A única resposta que eu já tenho é o NÃO, batalhar pelo SIM não deve ser um bicho de sete cabeças.


Mauá


Trabalhar em Mauá, uma cidade que está localizada na grande São Paulo e na atual conjuntura era uma das 10 cidades mais pobres do Estado de São Paulo, era realmente de esperar de tudo, mas eu sempre costumo dizer que Mauá me ensinou muito, foi uma escola pra mim, eu vi história de um povo na sua maioria migrante em busca de um lugar ao sol. É comum ouvir piadas de que mora em Mauá ser pé de barro ou coisa do tipo, mas pra mim não me importava, porque sei que somos lapidados no barro, que é do chão de barro que vem o asfalto.


Foi em Mauá que consegui o meu primeiro trabalho formal, consegui comprar o meu primeiro carro, parecia loucura adquirir um carro sem ao menos saber por quanto tempo eu iria trabalhar, mas eu arrisquei e isso eu também aprendi por lá.

Em Mauá eu vivi e vi os danos dos alagamentos da cidade inteira por conta da chuva, 2011, onde os pacientes vinham buscar ajuda e auxílio, já que somos os promotores de saúde. Foi em Mauá que eu vi que o sistema de saúde é falho, é moroso, é burrocrático que muitas às vezes depende da boa vontade de quem está atrás da mesa ou do balcão. Foi lá em que eu entendi que o sistema destroi a nossa sanidade mental enquanto profissionais do setor público.




Todo ano eu volto a Mauá, preciso relembrar minhas origens preciso relembrar o que aprendi e toda a trajetoria de construção profissional. Não quero que tudo seja igual, mas quero poder entender suas transformões assim como as minhas. Reencontrei pela vida usuários, pacientes que contam nossas histórias, o quanto pudemos mudar suas histórias, foram elas/eles que mudaram suas histórias, que reconstruiram seus sonhos que aprenderam a conviver com o HIV/AIDS. Algumas delas e deles se foram, foi lá em que uma mãe da qual eu pensava que não tinhamos vínculo ligou ao serviço de saúde e me anunciou a passagem de sua filha menor de 2 anos. Foi lá em que eu fui ao velório da minha primeira paciente e era uma criança, o coração é pisado e destruido nessas horas. A mãe ligando e suplicando ajuda e apoio, o que fazer quando um corpo, uma alma, uma vida se foi? Enquanto enfermeira a minha função é apoiar, foi a mim que ela confiou em desabafar, chorar e investir o seu precioso tempo em me ligar, logo ela, quem sempre atrasava nas consultas ou nunca me ligava.

Eu sou grata por ter me doado e por todas essas situações terem me feito mais humana, mulher e enfermeira. Talvez você quer que eu escreva negra, mas não precisava ser mais negra porque esse adjetivo sempre esteve comigo no ventre de mamãe, eu não precisava dizer, todos viam!

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